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ARTIGOS ORIGINAIS

Aplicação de instrumento para o diagnóstico dos fatores de risco psicossociais nas organizações

Application of an instrument for diagnosis of psychosocial risk factors in organizations

Sergio Roberto de Lucca1; Renata Cristina Sobral2

RESUMO

CONTEXTO: Os fatores psicossociais no trabalho podem desencadear estresse laboral, sofrimento psíquico e transtornos mentais. Entre os instrumentos validados, o Health Safety Executive - Management Standard (HSE-MS) tem sido utilizado na União Europeia no diagnóstico e na intervenção primária desses fatores.
OBJETIVOS: Aplicar o método desenvolvido pelo HSE-MS para o diagnóstico do estresse laboral nas organizações.
MÉTODOS: O estudo utilizou o método misto preconizado pelo HSE, com aplicação do questionário Health Safety Executive - Indicator Tool (HSE-IT) seguido de um aprofundamento com grupos focais. A pesquisa foi realizada em uma amostra aleatória de 2.284 trabalhadores dos segmentos de call center, hospitais, bancos, unidades básicas de saúde e indústrias.
RESULTADOS: A falta de controle/autonomia no trabalho e a falta de reconhecimento foram as principais causas de estresse no trabalho entre os sujeitos pesquisados.
CONCLUSÕES: O método do HSE pode ser considerado válido nesse tipo de investigação porque consegue se adaptar a qualquer país ou contexto organizacional, com o objetivo de diagnosticar os principais aspectos psicossociais desencadeantes de estresse nas diferentes organizações.

Palavras-chave: impacto psicossocial; estresse ocupacional; saúde mental; inquéritos e questionários.

ABSTRACT

BACKGROUND: Psychosocial factors at work might trigger stress in the job and mental problems and disorders. Among validated tools, the Health Safety Executive - Management Standard (HSE-MS) has been used in the European Union for the purpose of diagnosis and to develop primary interventions addressing those factors.
AIMS: To apply the method developed in HSE-MS to diagnose work-related stress in organizations.
METHODS: The study used the mixed method recommended in HSE, including application of Health Safety Executive - Indicator Tool (HSE-IT) followed by focus groups. The study was conducted with a random sample of 2,248 employees from a call center, hospitals, banks, Basic Health Units and manufacturing companies.
RESULTS: Lack of control/autonomy and of recognition in the workplace were the main causes of work-related stress in the analyzed sample.
CONCLUSIONS: The HSE method might be considered valid for this type of study, because it might be adapted to any country or organization setting to diagnose the main psychosocial factors of stress in different organizations.

Keywords: psychosocial impact; burnout, professional; mental health; surveys and questionnaires.

INTRODUÇÃO

Desde 1984, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) evidenciam a importância dos fatores psicossociais e sua influência no desencadeamento do estresse relacionado ao trabalho. De acordo com a OIT1, os fatores psicossociais se constituem, por um lado, em interações entre o conteúdo do trabalho e condições ambientais e organizacionais e, por outro, nas competências e necessidades dos trabalhadores.

Os aspectos psicossociais no trabalho têm assumido relevância no mundo profissional em mudança, e foram apontados como os principais riscos emergentes nos países da União Europeia2. Entre as doenças desencadeadas pelos fatores de risco psicossociais são relatadas na literatura a associação dos fatores psicossociais e doenças cardiovasculares3,4.

No Brasil, os fatores psicossociais e o estresse laboral contribuem para a ocorrência de doenças cardiovasculares, em especial a hipertensão arterial5, os transtornos mentais relacionados ao trabalho (TMRT)6, os distúrbios osteomusculares relacionadas ao trabalho (DORT) e parte dos acidentes de trabalho típicos.

A globalização e o desenvolvimento tecnológico têm refletido em mudanças significativas no conteúdo e na natureza do trabalho, com exigências crescentes de qualificação e disponibilidade, o que reflete negativamente na conciliação entre vida social e profissional. Seligmann-Silva7 destaca a influência dos contextos macroeconômicos nas organizações, com reflexos diretos na empregabilidade, modelos de gestão e relações laborais estabelecidas e nas condições de trabalho nas empresas e qualidade de vida dos trabalhadores, em uma dinâmica indissociável.

Kompier e Kristensen8 apontam que as intervenções no nível das empresas podem ser primárias (redução de estressores), secundárias (redução de estresse percebido pelo indivíduo e suas estratégias de enfrentamento – coping, ou de sinais de adoecimento) e terciárias (redução das consequências de longo prazo do estresse laboral e a reinserção dos trabalhadores adoecidos). Os autores constataram que a predominância de pesquisas nesse campo ocorre no nível individual, e costumam ser dos tipos secundário e terciário.

É crescente, na literatura científica, o número de estudos sobre o impacto negativo dos fatores psicossociais no desencadeamento do estresse ocupacional na saúde e bem-estar dos trabalhadores. De acordo com Fischer9, nas duas últimas décadas, pesquisas sobre fatores psicossociais de risco no ambiente profissional têm produzido um grande corpo de pesquisa empírica e teórica. De acordo com a autora, o modelo "demanda e controle" de Karasek Jr.10 e o modelo "desequilíbrio esforço recompensa" de Siegrist11 são os instrumentos mais utilizados pelos pesquisadores na avaliação dos fatores psicossociais, da organização do trabalho e relacionados com o estresse ocupacional.

A maioria dos instrumentos para avaliar fatores psicossociais e estresse laboral procura medir a percepção dos trabalhadores por meio de avaliações quantitativas, cujas questões são formuladas a partir das dimensões psicossociais e estressores primários da organização de trabalho e assinaladas em questionário de autorrelato pelos trabalhadores, em uma escala do tipo Likert. Destaca-se neste artigo a ferramenta indicadora dos fatores psicossociais desencadeantes de estresse no trabalho, desenvolvida pelo Health Safety Executive - Indicator Tool (HSE-IT)12, que atua no nível primário de intervenção.

Este trabalho tem por objetivo apresentar a aplicação de um instrumento inédito no Brasil que utiliza um método misto (qualiquantitativo) para identificação e diagnóstico dos principais componentes psicossociais que podem ser considerados fatores primários de estresse laboral, no contexto organizacional de cinco segmentos de atividade econômica.

 

MÉTODOS

Trata-se de um estudo exploratório, descritivo, que adotou um método misto de pesquisa, mediante a combinação de abordagens quantitativa e qualitativa na investigação, tanto na coleta quanto na análise de dados, caracterizando-se pelo desenho explanatório sequencial13.

O presente estudo consiste da aplicação transversal de um questionário quantitativo, denominado HSE-IT, para identificação de sete fatores psicossociais que, segundo a percepção dos trabalhadores, podem desencadear estresse e; uma segunda etapa qualitativa com grupos focais (GF) para aprofundamento e complementação dos aspectos não avaliados na primeira etapa e que poderão emergir como categorias relevantes no desencadeamento de estresse e sofrimento psíquico.

A pesquisa de campo, realizada entre 2013 e 2014, foi desenvolvida em cinco tipos de organizações com distintos ramos de atividade econômica: call centers, hospitais, bancos, Unidades Básicas de Saúde (UBS) e indústrias. Como critério de escolha dos respectivos ramos de atividade econômica, considerou-se, além da indústria, o setor de serviços (bancos e serviços de saúde), porque empregam um contingente significativo dos trabalhadores no Brasil. Cada um dos setores apresenta características peculiares nos processos de trabalho e modelos de gestão.

No que diz respeito à etapa quantitativa, a população de estudo foi constituída de uma amostra aleatória de 2.284 trabalhadores distribuídos nos respectivos segmentos econômicos, a partir da definição dos critérios de inclusão das amostras: ser ativo na organização pesquisada há mais de um ano; estar trabalhando no momento da pesquisa; ter assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE); e responder a todas as perguntas do questionário do HSE. Todos os trabalhadores incluídos foram elegíveis para participar do estudo.

De acordo com os critérios assinalados, participaram da pesquisa os 2.284 trabalhadores distribuídos nos segmentos, conforme segue: 371 atendentes da empresa de call center; 281 enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem do Hospital Estadual de Sumaré, São Paulo; 168 agentes comunitários de saúde das UBS do município de Parnaíba, Piauí; 240 funcionários de agências bancárias; e 1.224 trabalhadores da indústria.

A metodologia do Health Safety Executive - Management Standard - Indicator Tool (HSE-MS-IT) consiste na aplicação de um questionário quantitativo (HSE-IT) seguido de um aprofundamento qualitativo com grupos focais11. Estudo conduzido no Reino Unido por Edwards et al.14 confirmou as propriedades psicométricas do instrumento HSE-IT e sua validação. No Brasil, o HSE-IT foi validado para o português15,16. Na versão brasileira, conduzida por Lucca et al.15, as propriedades psicométricas também foram satisfatórias.

O questionário HST-IT, descrito no Quadro 1, é composto de 35 itens ou questões, distribuídas em 7 dimensões: demandas, controle, apoio gerencial, apoio dos colegas, relacionamentos, cargo e mudanças. Cada item permite que seja assinalada somente uma resposta entre as cinco alternativas de escolha: (0) nunca; (1) raramente; (2) às vezes; (3) frequentemente; e (4) sempre – relacionadas com a percepção dos trabalhadores, nos últimos seis meses, sobre a frequência dos acontecimentos.

 

 

Para as dimensões controle, apoio gerencial e dos colegas, cargo e mudanças, as respostas assinaladas "nunca" e "raramente" foram consideradas e quantificadas como indicativas de estresse. Já as dimensões demandas e relacionamentos possuem escala invertida, de modo que as respostas assinaladas "sempre" e "frequentemente" foram consideradas indicativas de estresse .

Na segunda etapa do método de avaliação qualitativa foi realizada a análise do conteúdo das sessões gravadas com os GF, realizada após o resultado da avaliação quantitativa, que aponta as principais dimensões desencadeantes de estresse dos respectivos setores. O critério global de escolha dos GF foi intencional. A inclusão dos sujeitos nos grupos focais considerou somente os trabalhadores que assinaram o TCLE, responderam a todas as questões do instrumento quantitativo e concordaram com a gravação das sessões. Todos os trabalhadores das empresas pesquisadas que preencheram os critérios de inclusão foram convidados a participar da segunda etapa da pesquisa. A seleção dos participantes para a constituição dos GF procurou atender à proporcionalidade entre homens e mulheres de cada setor, à média de idade e tempo médio de trabalho na empresa pesquisada e à preservação, em cada grupo, do mesmo nível hierárquico.

Os GF nos respectivos segmentos ou organização foram constituídos de 7 a 12 pessoas, que participaram de 4 a 6 sessões de 1 hora de duração. No call center foram selecionados 14 atendentes, em 2 grupos de 7 pessoas que participaram das 6 sessões, sendo a coleta de dados realizada entre os meses de maio e junho de 2013. No hospital, separaramse 2 grupos, sendo um grupo com 7 técnicos e auxiliares de enfermagem e outro com 9 enfermeiros que participaram de 4 sessões, entre os meses de agosto e outubro de 2013. Nas UBS, 12 agentes comunitários de saúde participaram de 4 sessões, entre os meses de novembro e dezembro de 2014. Na indústria foram definidos 7 grupos de operadores dos 3 setores críticos nos respectivos turnos de trabalho; cada grupo participou de 4 sessões, entre os meses de agosto e setembro de 2014. O critério utilizado para a cessação das sessões foi a saturação dos dados, ou seja, não houve inclusão de novos enunciados e temas nas categorias analisadas17.

O material obtido nas sessões dos GF foi gravado e transcrito na íntegra; e o seu conteúdo analisado pelos pesquisadores. No início de cada sessão, uma síntese do conteúdo da sessão anterior era lida com o objetivo de obter a validação consensual do GF. Os temas abordados nas sessões foram: as dimensões do questionário do HSE (demandas de trabalho, autonomia e controle, suporte da chefia e dos colegas, relacionamentos, processo de comunicação, mudanças na organização e cargo) e os outros aspectos, que não apareceram na etapa de avaliação quantitativa e foram considerados relevantes pelos participantes e apontados pelos grupos como desencadeantes de estresse.

Em todos os grupos focais foram realizados os mesmos procedimentos: no primeiro dia das sessões, os pesquisadores se identificavam e informavam o propósito da pesquisa de forma simples e clara, ocasião em que também era assegurado o anonimato dos participantes. Todos os participantes dos grupos aceitaram participar da segunda etapa da pesquisa e, como na primeira etapa, após a leitura foi solicitada a assinatura do TCLE. O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e aprovado sob o parecer nº 783.058.

 

RESULTADOS

O perfil dos participantes está descrito na Tabela 1. Com exceção da indústria, houve predominância da população feminina em todos os setores de serviços. A maioria dos trabalhadores tem entre 26 e 36 anos de idade; o tempo de trabalho foi muito variável, conforme o segmento pesquisado, maior entre as agentes comunitárias de saúde e menor entre os teleatendentes (call center).

 

 

Com relação aos fatores psicossociais e da organização do trabalho, foram assinaladas as principais dimensões dos fatores de estresse no trabalho, segundo a percepção desses trabalhadores. Novas dimensões ou categorias que não constavam daquelas pesquisadas no HSE-IT também foram consideradas como estressores ocupacionais pelos participantes dos grupos focais. A Tabela 2 descreve as principais dimensões de estresse laboral do questionário do HSE e GF.

 

 

Na percepção dos trabalhadores durante as sessões nos GF, a falta de controle/autonomia sobre as atividades de trabalho se destacou como principal dimensão de estresse no trabalho, com exceção dos agentes comunitários de saúde, grupo no qual aparece como terceira causa. Nas atividades com GF, a falta de reconhecimento e de plano de carreira e promoção emergiram como importantes categorias de análise, fonte de estresse e potencial desencadeador de sofrimento entre os sujeitos pesquisados.

As narrativas dos GF descritas a seguir ilustram a falta de reconhecimento e plano de carreira como fonte de estresse entre os sujeitos pesquisados.

Já na primeira sessão com o GF com os atendentes de call center, os participantes sugeriram a discussão sobre a falta de transparência nos critérios de promoção na carreira e reconhecimento. Segundo a política da empresa, os critérios de ascensão na carreira estão vinculados ao cumprimento de metas e aos parâmetros de qualidade, assiduidade e produtividade das respectivas modalidades de negócio.

A empresa tinha que rever a forma de tratamento (...) Tem muita competição, promoção de pessoas mais próximas dos supervisores e gerentes (...) (Atendente 1)

Funcionários de qualquer nível (1, 2 ou 3) podem concorrer à vaga. Já teve casos de N1 que passaram direto pra N3 e de N1/N2 que passaram a supervisor. (Atendente 2)

O Top Performance é uma ilusão. Força os funcionários a serem perfeitos pra poder participar do processo seletivo. Hoje, num corredor de 14 pessoas, só 1 ou 2 são Top. (Atendente 3)

A falta de reconhecimento profissional da categoria de enfermagem por parte do hospital desencadeia desmotivação e perda de profissionais.

(...) não há reconhecimento nenhum. Aí os bons vão embora para lugares onde serão reconhecidos. (Enfermeiro 4)

Falta plano de carreira, pois nossa responsabilidade de motivar a equipe e gerenciar problemas é grande, e isso gera um estresse muito grande (...) (Enfermeiro1)

A gente tem seis meses sem nenhuma falha e ninguém vem e parabeniza a gente (....), os valores que temos e não só mostrar apenas as críticas (...) (Atendente/técnico de enfermagem 8)

A credibilidade no trabalho que desenvolve o agente comunitário de saúde (ACS) é um aspecto fundamental para o reconhecimento do trabalho do ACS. A perda de credibilidade da confiança por parte da comunidade prejudica o trabalho do agente, conforme narrativa a seguir:

As famílias, por conta dessas mudanças, perdem tanto a credibilidade do ACS como também do posto. Mas isso devido a quê? Às mudanças. (ACS 2)

E, às vezes, a família que foi no posto e não teve a consulta, foi falado de ter a vacina e não teve e você vai perdendo assim o elo, a credibilidade. (ACS 5)

A falta de comunicação provoca um sofrimento adicional aos agentes devido ao contato próximo, ininterrupto, e ao vínculo que estabelecem com a comunidade.

O estresse maior ainda nessas mudanças que não somos informados. (ACS 5)

E, cadê o repasse das informações? O pessoal quer me bater aqui, dizendo que eu 'tô' mentindo. (ACS 3)

Com relação à indústria pesquisada, os operadores entendem que os critérios de promoção e plano de carreira não são transparentes e têm dúvidas sobre a meritocracia:

A gente não sabe o critério, eu nunca faltei e recebi a promoção, mas aí meu colega veio se gabar que faltou um monte e também ganhou. (Operador S3)

Este tipo de avaliação está quebrando o grupo à medida que eu trabalhei pra caramba e o outro que faltou 15 dias também ganhou. (Operador M2)

Então, qual é o critério? O operador de linha nunca recebe, ao contrário do operador de máquina. (Operador S8)

Referem também que o valor do prêmio por mérito é muito baixo (três a cinco reais) e que melhor seria receber um elogio do chefe ao invés de ganharem um valor tão irrisório que consideram como um insulto:

eu pedi para doarem a minha gratificação para uma instituição de caridade. (Operador S10)

Além disso, queixam-se que se ficarem doentes não há possibilidade de aumento de salário e ainda interfere na participação nos lucros e resultados (PLR):

Se você pegou uma falta já era: tem que ser 100% o ano inteiro. Se você teve um problema de qualidade também não pega. A injustiça é não pegar porque você ficou doente. (Operador M4)

 

DISCUSSÃO

Ao avaliar os fatores psicossociais que podem desencadear estresse nas organizações pesquisadas, observou-se que algumas características são intrínsecas do processo de trabalho e modo de gestão do segmento analisado.

As atividades de trabalho dos bancários, da categoria de enfermagem e agentes comunitários de saúde se caracterizam pelo atendimento direto aos usuários desses serviços e, no caso do teleatendentes, o atendimento é virtual e intenso. Nesse sentido, as características próprias da intersubjetividade com os usuários podem desencadear graus variáveis em intensidade e carga de trabalho (física e psíquica) e maior ou menor sofrimento psíquico, dependendo da autonomia e do controle das atividades dos profissionais. Os processos de gestão no trabalho, peculiares das respectivas organizações, podem desencadear sofrimento ou adoecimento, na medida que são impedidos ou não de agirem e, como resultado, poderá minimizar ou potencializar a dimensão do estresse percebido pelos trabalhadores18-20.

Também devem ser considerados, nos aspectos psicossociais relacionados à organização do trabalho, os modelos de gestão das organizações selecionadas para o estudo. O call center representa um modelo neotaylorista de gestão; no setor saúde são relevantes os aspectos de intersubjetividade intrínsecos nas ações de cuidado; no setor financeiro, onde os bancários foram transformados em vendedores de produtos, sobrevém uma gestão coercitiva de produtividade e metas; e o setor da indústria, representado pelo segmento industrial do ramo alimentício, possui um modelo de gestão ambíguo, porque a empresa detém certificados de qualidade dos seus produtos e processos, mas mantém linhas de produção e um modelo de gestão do tipo taylorista.

O modelo de gestão adotado pelas respectivas organizações, com ênfase na intensificação do ritmo de trabalho, contribui para a percepção dos trabalhadores em relação à falta de controle/autonomia, à medida que são impedidos de exercerem a subjetividade e a criatividade com certo grau de liberdade para execução das atividades de trabalho20.

Na empresa de telemarketing se misturam controle e disciplina, através do uso de tecnologias sofisticadas, como principal elemento de cerceamento à liberdade e subjetividade dos trabalhadores. Segundo os participantes, há pouco poder de controle e decisão sobre o próprio ritmo de trabalho, visto serem submetidos à rigidez do trabalho prescrito através do script que padroniza o atendimento e controla o afeto e as reações espontâneas21. Exige-se uma comunicação eficaz; entretanto, há dificuldade de interação cliente-atendente devido à impossibilidade de utilização de gestos e expressões faciais e da imposição de tempo e conteúdo. Essas características contribuem para a ineficácia do processo de comunicação e podem aprisionar emoções e subjetividade dos atendentes. Há pressão da empresa para que os atendentes obedeçam aos critérios de qualidade: tempo de chamada, grau de resolutividade e obediência na padronização das respostas22.

Na instituição hospitalar, os profissionais de enfermagem identificaram, na avaliação quantitativa, a elevada demanda de trabalho e a ausência de autonomia como principais fatores de estresse laboral. O hospital possui a certificação canadense de excelência dos serviços prestados aos usuários; entretanto, o processo administrativo é visto pelos profissionais, nos GF, como uma sobrecarga adicional para a enfermagem e como impeditivo da assistência. Os profissionais de enfermagem esperam que o hospital ofereça estrutura adequada quanto aos equipamentos e à tecnologia, e que possam adequar os seus recursos humanos para a execução do trabalho bem feito.

Os bancários, das agências de bancos públicos e privados apontaram as dimensões controle, demandas e relacionamentos como principais fatores de estresse. Diversos aspectos identificados no presente estudo estão relacionados diretamente às três dimensões, tais como a pressão por metas cada vez mais desafiadoras, acúmulo de funções, cobrança para vender produtos de natureza duvidosa, na opinião dos bancários, e preocupação com as avaliações da chefia e medo de perder o emprego.

Os fatores psicossociais apontados pelos bancários também foram relatados na literatura nacional23,24 e internacional25 como os mais frequentemente identificados em trabalhadores do setor financeiro como estressores ocupacionais. A protocolização do trabalho bancário, a cobrança de alto grau de polivalência, a perfeição no desempenho e a intensa pressão temporal são reconhecidas como propiciadoras de sobrecarga mental e competitividade26. Essa situação reflete também nos quase 40% de trabalhadores que avaliaram como ruim a situação nos relacionamentos interpessoais.

Para os ACS, a falta de reconhecimento e a violência, marcada pelas condições de vida do território em que moram e atuam, são percebidas como principais geradoras de estresse. Os ACS têm que lidar com algumas competências e atividades que não lhes são inerentes, e a necessidade de colaborar para a resolução de problemas comunitários ocasiona sobrecarga e conflito pela impossibilidade de resolver algumas demandas. Algumas carências nos serviços de saúde são fatores que causam sofrimento no trabalho dos agentes, com destaque para a falta de resolutividade dos serviços, as constantes mudanças dos membros da equipe de saúde e a descontinuidade de projetos27.

Na indústria alimentícia, a falta de autonomia e de comunicação foram os principais fatores desencadeantes de estresse entre os operadores da produção. Os operadores relatam que "na linha não pensam no trabalho, que vai tudo no automático", porque não existe grau de autonomia. Já os operadores de máquinas diferenciam os aspectos de sobrecarga física e mental nos dois tipos de trabalho, e relataram que, na máquina, "a concentração e atenção consomem a mente e não o corpo"; alem disso, um funcionário disse: "a parada de máquina causa muito estresse na gente", referindo-se às interrupções das máquinas automáticas.

A carga de trabalho representa o conjunto de esforços investidos de modo a atender às exigências das tarefas, conceito que abrange os esforços físicos, cognitivos e emocionais e representa o conjunto de esforços desenvolvidos para atender às exigências das tarefas, que podem gerar desgaste físico e mental, e sua natureza biopsicossocial e cumulativa7.

A falta de autonomia do sujeito para agir nas situações do trabalho real, inclusive quando precisa confrontar a própria organização e os colegas, também gera sofrimento psíquico28. Nas situações em que predominam atividades sem sentido ou de baixo valor cognitivo, estranhas, dessubjetivantes ou, ainda, alienantes, o sofrimento psíquico poderá dar lugar aos transtornos mentais29,30.

A comunicação deficiente aparece como importante dimensão em todos os setores e organizações pesquisadas. O poder e a luta pelo poder estão na base da regulação dos atos sociais, tanto no interior como no exterior de uma organização. Nesse sentido, o processo de comunicação de gestores se restringe à informação objetiva e direcionada à execução do trabalho ou da produção. Ao invés disso, deveria levar em conta o conteúdo da informação, a receptividade e a possibilidade de argumentação de quem recebe a informação19.

Segundo as narrativas dos operadores da indústria, o turno fixo de seis dias trabalhados com uma folga semanal (6 por 1) aos domingos desencadeia muita insatisfação no contexto do trabalho e fora dele, à medida que interfere na vida social e familiar. Apontaram ainda como injustos os critérios de plano de carreira adotados, que impedem a promoção de operadores que sofreram acidentes de trabalho, tiraram licenças trabalhistas (maternidade, benefício previdenciário de auxílio doença, etc.) ou tiveram faltas (ainda que justificadas). Na avaliação de desempenho, o aspecto mais importante é o item sobre o comportamento, uma vez que a empresa adota um critério próprio a partir de uma média em relação às faltas, segurança do trabalho e de retrabalho para o estabelecimento de metas.

Avaliar o desempenho no trabalho implica poder explicitar o trabalho concreto. Na falta de discussão sobre o trabalho real e de se considerar o envolvimento da subjetividade que ele pressupõe (sabedoria prática e dinâmica do reconhecimento), a avaliação objetiva e quantitativa impõe uma negação à realidade do trabalho31. Para a organização pesquisada, a avaliação de desempenho é um instrumento de gestão disciplinador e coercitivo; no entanto, quando individualizada ou mal utilizada, contribui para o sentimento de injustiça e interfere na cooperação entre os colegas de trabalho31.

As narrativas dos sujeitos nos grupos focais expressaram sentimentos de não serem recompensados adequadamente em relação ao esforço despendido. O efeito adverso, percebido pelos trabalhadores sobre sua saúde como relação variável psicossocial relacionada ao trabalho, constitui um "desequilíbrio esforço-recompensa"11.

A falta de reconhecimento sobre o trabalho, verbalizado pelos atendentes, enfermeiros e ACS, e a ausência de um plano de carreira para atendentes e operadores da indústria corroboram o sentimento de injustiça e de não serem recompensados pelo trabalho realizado. A falta de feedback e de reconhecimento pode desencadear sofrimento nos trabalhadores e vir a ser o prenúncio de adoecimento psíquico29.

O trabalho que faz sentido é aquele que emancipa e que possibilita crescimento e desenvolvimento daquele que o realiza. Nesse aspecto, as organizações e suas formas de gestão têm um papel importante de possibilitar ou impedir que o trabalho faça sentido para as pessoas que o realizam. O impedimento de fazê-lo bem feito poderá desencadear sofrimento psíquico e adoecimento aos trabalhadores20. Nesses casos, o confronto entre as expectativas e os desejos dos trabalhadores que possuem uma história de vida e de trabalho particular e o impedimento, por parte da organização do trabalho, de exercer a subjetividade por meio da sublimação poderá desencadear sofrimento psíquico7,28.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo utilizou um método misto de investigação e os resultados apontaram as principais dimensões de estresse no trabalho entre os sujeitos pesquisados; na avaliação quantitativa, a falta de controle/autonomia sobre as atividades de trabalho e, na avaliação qualitativa, a falta de reconhecimento e de um plano de carreira.

O método do HSE-MS-IT pode ser considerado válido para esse tipo de investigação porque pressupõe a utilização de uma avaliação mista que consegue se adaptar a qualquer contexto organizacional e não o oposto. Entretanto, reconhecem-se as limitações do estudo: o corte transversal e a falta de comparabilidade entre os grupos participantes, uma vez que os resultados de uma organização não podem ser replicados em outra, todavia, não deixa de favorecer o conhecimento empírico e de estratégias que podem ser aproveitadas.

Outra limitação dos questionários quantitativos de avaliação da percepção dos fatores psicossociais desencadeantes de estresse refere-se à limitação de sua abrangência em relação à diversidade de dimensões dos fatores psicossociais. A presente pesquisa constatou que reconhecimento e plano de carreira não fazem parte dos itens a serem verificados. Nesses casos, incluir os GF no método ou modelo de investigação é de fundamental importância. A segunda etapa, denominada qualitativa com os GF, possibilitou a identificação de novas categorias e dimensões, e a manifestação dos trabalhadores sobre o trabalho real e a subjetividade destes e a apropriação dos sujeitos sobre os processos de trabalho.

O aprofundamento da discussão sobre a análise dos resultados obtidos e os níveis de intervenção na organização dependerá do(s) pesquisador(es) que conduz(em) essa(s) atividade(s), e do real interesse da instituição em abrir esse espaço e querer modificar as condições e os processos de trabalho, e do grau de mobilização dos trabalhadores.

Oferecer um instrumento com 35 itens, de fácil aplicação, de baixo custo e com boas propriedades psicométricas tem um potencial prático relevante, à medida que disponibiliza aos profissionais de saúde um instrumento e um método para o diagnóstico dos fatores psicossociais desencadeantes de estresse laboral nos trabalhadores no interior das organizações.

Pontua-se que os questionários padronizados mais utilizados na literatura, com destaque para os instrumentos "demanda e controle" de Karasek e "esforço e recompensa" de Siegrist e Copenhagen de Kristensen, não conseguem apreender a dimensão de todos os fatores psicossociais desencadeantes de estresse e sofrimento psíquico, na percepção dos trabalhadores.

Nesse sentido, o método do HSE-MS-IT, ao propor uma avaliação quanti-qualitativa, amplia a possibilidade de identificar com maior amplitude as situações reais de estresse na respectiva organização pesquisada.

Dessa forma, o método descrito e analisado nesta pesquisa oferece aos pesquisadores e profissionais de saúde e trabalho, de instituições públicas e privadas, empresas ou sindicatos, um método e ferramenta para o diagnóstico coletivo dos principais aspectos psicossociais e organizacionais desencadeantes de estresse na organização de trabalho. O diagnóstico dos fatores psicossociais em qualquer organização e as formas de intervenção são caminhos necessários e promissores.

Considerando-se a emergência dos fatores psicossociais no desencadeamento do estresse nos ambientes de trabalho, manifestados pela progressiva ocorrência de transtornos mentais relacionados ao trabalho, seria desejável que as empresas, organizações e governo assumissem como imprescindível o gerenciamento desses aspectos, a exemplo do que ocorre na Europa2. Foi com esse objetivo que foi proposto, após a validação do instrumento do HSE-IT, a aplicação do HSE-MS-IT em organizações e segmentos distintos.

 

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Recebido em 26 de Outubro de 2016.
Aceito em 30 de Janeiro de 2017.

Trabalho realizado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – Campinas (SP), Brasil.

Fonte de financiamento: nenhuma


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