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REVISOES DE LITERATURA

Avaliação do risco de redescolamento de retina após retorno a atividade laboral braçal

Assessment of the retinal redetachment risk after returning to manual labor activity

Fábio Petersen Saraiva1; Liana Tito Barbosa Francisco2; Patricia Grativol Costa Saraiva3

RESUMO

CONTEXTO: O descolamento da retina (DR) é um transtorno caracterizado pela separação entre a retina neural e o epitélio pigmentar. De janeiro a outubro de 2013, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) reconheceu 3.540 casos de incapacidade laborativa decorrentes de descolamentos e defeitos da retina. Cessada a recuperação pós-operatória, não há consenso médico se o trabalhador pode ou não voltar à atividade laboral braçal.
OBJETIVO: Estudar se o levantamento de peso e/ou retorno às atividades laborais braçais podem ser considerados fatores de risco para redescolamento de retina.
MÉTODOS: Realizada busca eletrônica de dados nos sites do Medline e do Lilacs no período de 03 de junho de 2013 a 07 de junho de 2013, além de pesquisa em livros textos clássicos de oftalmologia.
RESULTADOS: Dentre os artigos encontrados, somente um associa positivamente o esforço físico ao descolamento de retina.
CONCLUSÃO: Não há elementos de convicção que atestem à necessidade de afastamento permanente da pessoa operada de DR de atividades braçais, uma vez que a maioria dos estudos publicados até o momento não consideram o levantamento de peso e/ou retorno a atividades físicas de esforço como fatores de risco para descolamento ou redescolamento de retina.

Palavras-chave: descolamento retiniano; esforço físico; previdência social; trabalho; riscos ocupacionais.

ABSTRACT

CONTEXT: The retinal detachment (RD) is a disorder characterized by the separation between the neural retina and retinal pigment epithelium. From January to October 2013, the Brazilian National Institute of Social Security recognized 3,540 cases of work incapacity due to retinal detachments and defects. Ceased postoperative recovery, there is no medical consensus on whether or not the employee can return to manual labor activity.
OBJECTIVE: To study if weight lifting and/or return to manual labor activities can be considered risk factors for a new retinal detachment.
METHODS: It was performed electronic search of the Medline and Lilacs database between June 03, 2013 and June 07, 2013, and it was also done a research in classical textbooks of ophthalmology.
RESULTS: Among the articles found, only one associates physical stress to retinal detachment.
CONCLUSION: There is no substantial evidence attesting to the need for permanent removal of RD operated patients from manual labor activities, since most studies published to date do not consider weight lifting and/or return to physical activity stress as a risk for retinal detachment or re-detachment factors.

Keywords: retinal detachment; physical exertion; social security; work; occupational risks.

INTRODUÇÃO

O descolamento da retina (DR) consiste na separação entre a retina sensorial e o epitélio pigmentar da retina (EPR), ficando este espaço preenchido por fluido sub-retiniano (FSR)1.

Os efeitos do descolamento na interface fotorreceptores-EPR são rápidos e extensos. A morfologia da superfície apical do EPR se altera rapidamente ocorrendo proliferação e migração celular para o espaço sub-retiniano. Em apenas 24 horas de descolamento, já se é possível detectar sinais de proliferação em todas as células não neuronais da retina, incluindo astrócitos, células de Müller, pericitos, células do endotélio capilar e micróglia. Os segmentos externos dos fotorreceptores degeneram permanecendo apenas cílios rudimentares. A proliferação das células não neuronais e a degeneração dos fotorreceptores são os principais fatores de mau prognóstico para recuperação visual após reparo cirúrgico do DR2 .

Os descolamentos de retina podem ser classificados em três grandes categorias, baseado na causa do descolamento. A forma mais comum é o DR regmatogênico, que ocorre por consequência de uma rotura completa em algum ponto da retina. É caracterizado pela presença de FSR originário da cavidade vítrea, que migra através de uma descontinuidade da retina neurossensorial3. Estima-se que a sua prevalência seja de aproximadamente 0,3% na população geral, aumentando para 5% nos altos míopes, de 2 a 3% nos afácicos e até 10% quando ocorre perda vítrea (tipo de complicação cirúrgica) durante a cirurgia de catarata4.

A segunda categoria, DR tracional, ocorre quando adesões mecânicas vítreo-retinianas destacam a retina do EPR. Em alguns casos, o DR pode envolver ambos os mecanismos acima descritos. A terceira categoria, DR exsudativo (seroso), ocorre devido a um processo que resulta em acúmulo de FSR na ausência de tração ou rupturas como, por exemplo, pode ser observado em caso de tumores ou inflamação3.

O tratamento do DR regmatogênico é cirúrgico, e as cirurgias utilizadas são introflexão escleral, retinopexia pneumática e vitrectomia posterior via pars plana (VVPP). O sucesso imediato no reposicionamento da retina descolada, infelizmente, não é sinônimo de êxito em longo prazo. Até olhos com retina colada por mais de um ano podem vir a redescolar. Em um estudo retrospectivo (453 olhos) com o sucesso cirúrgico no período de um ano, observou-se redescolamento regmatogênico em 10 casos (2,2%)2.

De janeiro a novembro de 2013, a perícia médica oficial do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) reconheceu e codificou 3.540 casos de incapacidade laborativa, com necessidade de afastamento do trabalho superior a 15 dias, com o Código Internacional de Doenças (CID-10) H33 (descolamentos e defeitos da retina)5. Cessada a recuperação pós-operatória, entre 6 e 12 semanas, o perito médico previdenciário e o médico do trabalho se deparam com uma questão polêmica: o trabalhador operado de DR pode retornar a atividade laborativa braçal? O levantamento de peso é um fator de risco para o redescolamento da retina?

O objetivo deste trabalho é avaliar se o levantamento de peso e/ou retorno às atividades laborais braçais são fatores de risco para o redescolamento de retina e fornecer subsídios técnicos para orientação de médicos do trabalho, peritos médicos previdenciários e, até mesmo, oftalmologistas quanto à conduta ocupacional após uma cirurgia de DR.

 

METODOLOGIA

Levantamento bibliográfico realizado a partir de pesquisa na base de dados eletrônica do Medline e do Lilacs, entre o período de 03 de junho de 2013 a 07 de junho de 2013, por meio de busca de artigos pelas palavras chaves "retina", "descolamento", "esforço físico", "levantamento de peso". Assim que algum trabalho relacionado ao tema era identificado, todas as sugestões de trabalhos correlatos feitas pelas bases de dados eram também verificadas. Além disso, foram consultados livros textos clássicos de oftalmologia.

 

FATORES DE RISCO PARA O DESCOLAMENTO DE RETINA

Os fatores de risco para o DR variam de acordo com o tipo de DR.

O DR regmatogênico está associado com a presença de roturas e buracos retinianos. As roturas retinianas decorrem de tração vítrea em áreas de adesão vitreorretinianas. Algumas lesões podem gerar adesões anômalas, predispondo a formação destas roturas, entre elas: degeneração lattice, tufos císticos retinianos congênitos, acúmulos de pigmentos retinianos, anormalidades da base vítrea e áreas de branco sem pressão. Os buracos retinianos surgem em áreas de atrofia crônica da retina. Outros fatores de risco descritos são a miopia, a afacia e o trauma3. Ressalta-se que o ambiente de trabalho é fonte de significativa parcela dos traumas oculares, chegando a representar cerca de 70 a 85% dos casos em alguns estudos6,7. Gerente et al. descrevem que, dentre os trabalhadores com maior risco para o trauma ocular, encontram-se os serralheiros, pedreiros e metalúrgicos7. Entre os fatores de risco para o DR tracional, a literatura cita: diabetes mellitus, retinopatia falciforme e doenças venoclusivas1. Justifica-se, portanto, a exigência de avaliação oftalmológica com mapeamento de retina nos exames admissionais e periódicos dos trabalhadores portadores de tais condições supracitadas.

Por outro lado, o DR exsudativo é predisposto por doenças que cursem com aumento da permeabilidade vascular retiniana, por exemplo: tumores de coróide, uveítes e neovascularização sub-retiniana3.

 

FATORES DE RISCO PARA O REDESCOLAMENTO DE RETINA

O redescolamento de retina pode ocorrer precoce ou tardiamente. Quando ocorre logo após a alta hospitalar ou até seis semanas após a cirurgia, classifica-se como insucesso precoce, sendo a rotura retiniana aberta a principal causa. O redescolamento tardio está associado a outras causas. As proliferações vitreorretinianas são as causas mais comuns de recidiva1,2,8. A abordagem cirúrgica do episódio primário pode ter relação com o novo descolamento. Em um estudo prospectivo e randomizado, Heussen et al. evidenciaram que olhos pseudofácicos beneficiaram-se mais com vitrectomias primárias, enquanto olhos fácicos submetidos à introflexão escleral obtiveram uma taxa de redescolamento menor9. Acredita-se que o aumento da incidência do redescolamento nos olhos fácicos em pacientes submetidos a VVPP se deve a cirurgia de catarata necessária após a realização da vitrectomia10.

Cirurgias que necessitaram de implante de óleo de silicone tem uma taxa de recidiva do descolamento de 20–25% após remoção desse óleo. O redescolamento nesses casos foi independente do tempo de tamponamento do óleo de silicone10-13. Em um trabalho retrospectivo com 71 pacientes, Bui Quoc et al., observaram a proliferação vitreo-retiniana como único fator de risco para recorrência do descolamento nestes casos14.

Um estudo sugeriu também como fatores de risco para redescolamento de retina em pseudofácicos a deterioração visual pré-operatória, capsulotomia com YAG laser, roturas retinianas grandes, número de quadrantes afetados e sintomáticos defeitos de campo visual. Por outro lado, no grupo de pacientes fácicos, esse mesmo trabalho descreveu as condições de baixa pressão intraocular e descolamento persistente na região do implante escleral durante o intraoperatório como outros fatores de risco adicionais11.

 

RELAÇÃO DO ESFORÇO FÍSICO COM O DESCOLAMENTO DE RETINA

Este é um tema controverso entre os retinólogos. Alguns recomendam o afastamento definitivo de atividades laborais que envolvam levantamento de objetos com peso acima de 10 quilos. Isto gera um enorme problema para o trabalhador, empregador, INSS e sociedade, uma vez que este tipo de conduta sobrecarrega de responsabilidades o perito médico previdenciário e o médico do trabalho que decidem pelo retorno do trabalhador ao labor ou, caso as recomendações destes especialistas sejam seguidas, haverá um gasto de recursos para reabilitação profissional deste cidadão, além de prejuízos emocionais para o trabalhador que será visto como um deficiente físico perante os familiares e sociedade.

Alguns especialistas entendem que ocorre um excesso de acomodação durante a realização de um grande esforço físico. O espasmo ciliar provocado seria um fator predisponente para a patogênese do descolamento de retina. No entanto, um trabalho com jovens emétropes submetidos à avaliação da espessura cristaliniana, por meio de ultrassonografia, durante acomodação e/ou realização de levantamento de um objeto com 25 quilos de peso não observou achados significativos que dessem suporte a esta teoria15.

Outra teoria levantada para tentar relacionar a atividade física com DR é a possível hiperemia de coróide que poderia ocorrer em altos míopes durante atividade física intensa em pessoas não treinadas para tal. No entanto, esta especulação foi rechaçada por alguns autores na medida em que foi demonstrada ausência de descolamento de retina nos casos de descolamento de coróide associados ao acúmulo de fluido ou sangue. Além disso, oclusões experimentais de vasos coróideos calibrosos não levaram ao DR16.

Mattioli et al., por outro lado, concluíram, em seu trabalho caso-controle com 48 pacientes com DR idiopático, que o levantamento ocupacional de pesos pode sim representar um relevante fator de risco para DR por meio de picos de elevação da pressão intraocular que podem ocorrer com a manobra de valsalva secundária ao esforço físico. Durante a atividade física intensa, haveria uma elevação da pressão intratorácica e intra-abdominal pelo mecanismo devalsalva, levando a umaumento generalizado da pressão venosa e, por fim, da pressão intraocular em virtude da dificuldade de drenagem do aquoso pela via venosa episcleral. Os picos de hipertensão ocular levariam a roturas retinianas e consequente descolamento. Segundo estes autores, quanto maior o peso, maior o risco para descolamento de retina17. É digno de nota que a elevação da pressão intraocular de cerca de 25 mmHg somente é observado após levantamento de pesos acima de 15–20 quilos18.

Um estudo prospectivo, randomizado e mascarado acompanhou por seis meses 108 pacientes operados de DR regmatogênico pela técnica de introflexão escleral. Um grupo foi encorajado a realizar qualquer atividade física imediatamente após a alta hospitalar. O outro grupo foi estritamente proibido de realizar qualquer tipo de atividade física por seis semanas, inclusive dirigir carros. Não foi encontrada nenhuma diferença estatisticamente significativa na taxa de redescolamento de retina ou acuidade visual final19.

Verifica-se, portanto, que a maioria dos estudos disponíveis até o momento sequer cita esforço físico como possível causa de descolamento ou redescolamento de retina. Há apenas um grupo de autores que sustenta a tese de que o peso pode ser considerado fator de risco para DR. Entretanto, este grupo baseou-se em avaliações retrospectivas.

Conforme mencionado por Lucca e Campos, o grande desafio do médico do trabalho consiste na correta associação da doença com o trabalho20. Destacamos, nesta revisão da literatura, que as hipóteses levantadas por alguns autores para explicar como o levantamento de peso levaria ao DR não nos parecem muito plausíveis. Os trabalhos experimentais e prospectivos analisados neste presente estudo concluem por não haver associação positiva entre esforço físico e DR.

 

CONCLUSÃO

Ao considerar a literatura pesquisada, não parece ser possível afirmar que o levantamento de peso possa acarretar um novo DR. Portanto, não há elementos de convicção que atestem a necessidade de afastamento laboral braçal permanente da pessoa operada de DR.

 

REFERÊNCIAS

1. Ávila M, Lavinsky J, Júnior CAM. Retina e vítreo. Série Oftalmologia Brasileira. 2.ed. Rio de Janeiro: Cultura Médica/Guanabara Koogan; 2011.

2. Foster RE, Meyers SM. Recurrent retinal detachment more than 1 year after reattachment. Ophthalmology. 2002;109 (10):1821-7.

3. American Academy of Ophthalmology. Retina and vitreous. Section 12. 2011-2012.

4. Lavinsky J. Doenças prevalentes da retina e vítreo. Rio de Janeiro: Editora Cultura Médica; 2002.

5. Brasil. Ministério da Previdência Social. Informações Estatísticas Relativas à Segurança e Saúde Ocupacional. Disponível em: <http://www.mpas.gov.br/conteudoDinamico.php?id=502>

6. Macewen CJ. Eye injuries: a prospective survey of 5671 cases. Br J Ophthalmol. 1989;73(1):888-94.

7. Gerente VM, Melo GB, Regatieri CV, Alvarenga LS, Martins EN. Trauma ocupacional por corpo estranho corneano superficial. Arq Bras Oftalmol. 2008;71(2):149-52.

8. Ryan SJ. Retina. 4ª ed. Califórnia: Elsevier – Mosby; 2006.

9. Heussen N, Hilgers RD, Heimann H, Collins L, Grisanti S; SPR study group. Scleral buckling versus primary vitrectomy in rhegmatogenous retinal detachment study (SPR study): multiple-event analysis of risk factors for reoperations. SPR Study report no. 4. Acta Ophthalmol. 2011;89(7):622-8.

10. Kanski JJ. Clinical ophthalmology. 4ª ed. Inglaterra: Butterworth-Heinemann; 1999.

11. Zhioua R, Ammous I, Errais K, Zbiba W, Ben Younes N, Lahdhiri I, et al. Frequency, characteristics, and risk factors of late recurrence of retinal detachment. Eur J Ophthalmol. 2008;18(6):960-4.

12. Jonas JB, Knorr HL, Rank RM, Budde WM. Retinal redetachment after removal of intraocular silicone oil tamponade. Br J Ophthalmol. 2001;85(10):1203-7.

13. Jonas JB, Budde WM, Knorr HL. Timing of retinal redetachment after removal of intraocular silicone oil tamponade. Am J Ophthalmol. 1999;128(5):628-31.

14. Bui Quoc E, Bernard A, Azan F, Renard G, Chauvaud D. Results of treating rhegmatogenous retinal detachment with vitrectomy and silicone oil tamponade. J Fr Ophtalmol. 2005;28(9):944-52.

15. Schwab B, Gärtner J. Can the lifting of heavy weights provoke a spasm of ciliary muscles conducive in turn to retinal detachment? Mod Probl Ophthalmol. 1977;18:64-7.

16. Gärtner J. Retinal detachment, caused by hyperaemia of the choroid? Remarks on the supposed relationship between retinal detachment and "indirect trauma". Klin Monbl Augenheilkd. 1975;166(4):559-63.

17. Mattioli S, Curti S, De Fazio R, Mt Cooke R, Zanardi F, Bonfiglioli R, et al Occupational lifting tasks and retinal detachment in non-myopics and myopics: extended analysis of a case-control study. Saf Health Work. 2012;3(1):52-7.

18. Pivovarov NN, Malakhova LA, Bagdasarova TA, Chetvertukhin AP. Role of weight lifting in the development of retinal detachment. Vestn Oftalmol. 1977;(6):50-3.

19. Bovino JA, Marcus DF. Physical activity after retinal detachment surgery. Am J Ophthalmol. 1984;98(2):171-9.

20. Lucca SR, Campos CR. A Medicina do Trabalho no mundo contemporâneo: o perfil dos médicos do trabalho, desafios e competências. Rev Bras Med Trab. 2011;9(1):45-7.

Recebido em 24 de Março de 2014.
Aceito em 28 de Julho de 2014.

Trabalho realizado no Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) – Vitória (ES), Brasil.

Fonte de financiamento: nenhuma


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